Pormenor de Memória das Armadas que de Portugal passaram à Índia (cerca de 1568)
BABELICUS EM PORTUGUÊS
Número 1 - 2016
Apresentamos a primeira edição de BABELICUS em português, que toma o lugar do Pegasus International.
Babelicus está aberto aos escritores de âmbito lusófono de toda a parte do mundo: o site publicará semestralmente os melhores contos e contos breves, entre os recebidos, que cumpram as regras civis de respeito por outras culturas, religiões e ideias políticas. Os autores não perdem os seus direitos autorais.
Podem enviar os seus textos ao correio: Stefano Valente stef.valente@tiscali.it
Podem enviar os seus textos ao correio: Stefano Valente stef.valente@tiscali.it
A hora da liberdade - José Eduardo Lopes *
Uma cerca de arame farpado cerca o campo de refugiados. Pela manhã chega um camião, que desembarca mais refugiados, “refugados” vigiados por soldados de espingardas a tiracolo (uma vez por semana, levam-nos em quatro ou cinco camiões que os confiam a couraçados da marinha que os vão largar num ancoradouro no país deles, um torrão de terra árida na outra margem do Mediterrâneo… pelo menos, é isso que eles dizem…). A comida é distribuída por voluntários com as insígnias da Cruz Vermelha, sacerdotes de várias religiões apascentam alguns prosélitos que procuram conforto espiritual e prazer lúbrico, bibliófilos excêntricos de chapéu colonial procuram sem esperança pessoas que saibam ler esperanto e occitano para lhes emprestarem as sua preciosidades literárias: Racine, Voltaire, Camilo José Cela, Paul Celan, Barbara Cartland.
No meio daquele bulício e atividade, que enche o ar de pequenas partículas de poeira dourada levantadas por sandálias e pés nus, ergue-se, imóvel, o Andorinha, o solitário. Não há pessoas que se aproximem dele, nem deuses ou escritores, e os que distribuem comida nem o chegam a ver confundindo a sua tez esmaecida com a poeira amarelada que paira no ar, e as suas roupas andrajosas com o tecido das tendas. O Andorinha está magríssimo, e a única coisa que lhe pesa nas entranhas é ser o único dos refugiados que sabe o destino dos camiões com as pessoas que carregam ali. Mesmo magro, inerte, infra-humano, Andorinha tem esperança de escapar àquele sinistro destino de viagem. Cada dia, cada hora mais, ele vai ficando mais magro. Não tarda e conseguirá sair dali levitando. Mesmo sem bater as asas. * José Eduardo Lopes nasceu em Moçambique, de onde se refugiou em Portugal com 13 anos. Os primeiros contos que editou na Web eram inspirados na escrita crua e forte de Raymond Carver. Muitas outras influências se juntaram a esta, com realce para Mário-Henrique Leiria, Borges e Cortázar. As suas histórias vão sendo escritas ao ritmo das ideias e memórias que experimenta, e daquilo que o quotidiano ou a fantasia lhe sugere.
O seu blogue: Estrada de Santiago
Náufragos - Eduardo Oliveira Freire *
Ele queria só se divertir e ela queria fugir da solidão. Quando ele a viu, enxergou seu desejo e quando ela o viu, um refúgio. Beijos, abraços e palavras românticas. Ele a levou para o penhasco que dava para uma ampla visão ao mar aberto. Ela olhou a imensidão do oceano, sentiu-se atraída e quando observou o rapaz a sua frente, sentiu repulsa. Jogou-se do penhasco. Atônito, ele fugiu com medo de ser incriminado. Anos depois, a maturidade o fez entender o que acontecera.
Certos indivíduos são náufragos que só vêem a si mesmos, incapazes de enxergar o outro. Ele e a jovem que conhecera pertenciam a esse vasto grupo.
* Eduardo Oliveira Freire, brasileiro, formado em Ciências Sociais e aspirante a escritor. Gere os blogs http://dudv-descarrego. blogspot.com.br e http://cronicas-ideias. blogspot.com.br
* Eduardo Oliveira Freire, brasileiro, formado em Ciências Sociais e aspirante a escritor. Gere os blogs http://dudv-descarrego.
Coisas do silêncio - Angela Schnoor *
Quando se mudou para a pequena cidade do interior não conhecia pessoa alguma e não possuía meios de comunicação.
Sem ter com quem falar, no silêncio, em pouco tempo sentiu-se em paz. Entretanto, para não emudecer e lembrar palavras, passou a cantar dia e noite. Em pouco tempo ganhou fama de louco!
Proteção - Angela Schnoor
A cada dia, o mundo o ameaçava mais. Na parede branca do quarto pintou uma gaiola. Devagar, abriu a porta e entrou. Assim que fechou a tranca, destruiu o pincel e cantou!
«Nasci no Rio de Janeiro, Brasil, em março de 1944. Estudei e pratiquei a psicologia por mais de 40 anos. Jamais desejei concorrer ou participar de concursos. Como prêmios, a vida me deu duas filhas e alguns netos que me enchem de orgulho e afeto. Senti-me honrada quando amigos que encontrei através da Internet, traduziram e publicaram contos meus. Quase diariamente conto histórias que publico no blog Microargumentos. Além do psiquismo, as imagens me encantam e sinto necessidade de contar o que percebo em cada uma delas, mas não me sinto à vontade para escrever autobiografias.»
O seu blogue: Microargumentos
Mini-sagas - João Ventura *
História trágico-cósmico-fronteiriça
Quando chegou ao fim do universo, o astronauta rejubilou: afinal era finito! Mas a natureza tem horror ao vazio; encostado ao universo havia outro. E o pessoal do SEF exigiu-lhe visto para entrar. Regressou, humilhado, e fez-se funcionário público. Carimbava os vistos aos turistas que queriam visitar o universo vizinho...
Entre a insustentável leveza e o irremediável peso das palavras, a frustração do escritor perfeccionista
Escreveu com palavras leves. O conto escapou-lhe das mãos e subiu rapidamente no ar até se perder de vista.
Recomeçou, usando palavras pesadas. O conto escorregou da folha de papel e afundou-se, irremediavelmente perdido.
Quando, persistente, acabou o terceiro, com palavras de densidade apropriada, já o prazo tinha sido ultrapassado.
Reflexão sobre a carestia da escrita
Precisava de umas palavras para acabar o conto. Fui ao mercado. O governo devia ter mão nisto! Tudo caríssimo! Substantivos, adjectivos... um roubo! E os verbos? Passados, presentes, vá lá, mas os futuros!!!
“Sabe, os futuros andam muito incertos”, justificou-se, profissional, o vendedor. “Embrulho?”
“Não, obrigado, é para escrever já.”
Entre o Dentro e o Fora há sempre uma fronteira, ainda que frágil
Dizia o Lado De Dentro, orgulhoso: “Eu contenho o início, o ovo!”
“Mas eu incluo todo o universo, menos tu”, retorquia o Lado De Fora, enfático.
“Se continuam, salto daqui abaixo e mato-nos aos três!”, gritou a Casca, desesperada.
Palavras premonitórias: passou a dona da galinha, apeteceu-lhe um ovo estrelado...
* Português, gosta de escrever microcontos, mas por vezes arrisca-se a estórias um pouco maiores... Tem publicado um pouco por aqui e por ali, na Web e em antologias...
* Português, gosta de escrever microcontos, mas por vezes arrisca-se a estórias um pouco maiores... Tem publicado um pouco por aqui e por ali, na Web e em antologias...
O seu terreno preferido é a área do fantástico, mas não se preocupa muito com rótulos, e é um devoto confesso da Fantástica Trindade (Borges, Calvino & Cortázar).
Gosta de livros em papel.
Mínis - Fábia Lavenère *
Tango
Foi então que decidiu que uma aula de tango talvez ajudasse a esquentar seu relacionamento com o marido.
Inscreveu-os. O marido a contragosto, pois para ele tudo estava bem como estava.
Logo na primeira aula, a química que surgiu entre o marido e a professora foi avassaladora.
Ela teve que procurar outro par.
Escrever 1
Pegar um pêlo de sapo e fazer virar cheiro de nuvem
Varinha do pensamento letra faz da âncora a pipa.
Escrever 2
Botar o tijolo com cimento, janela e pintura, morar –me.
Orçamento
Dividia assim: com 70% do que ganhava pagava os deveres e 30% pagava os prazeres. Muitos dos prazeres eram de graça.
* Fábia Lavenère nasceu no Brasil, vive e trabalha no Rio de Janeiro, é artista visual e se interessa muito pelas relações criadas entre palavra e imagem, tem a escrita como atividade paralela ao seu trabalho de arte contemporânea
* Fábia Lavenère nasceu no Brasil, vive e trabalha no Rio de Janeiro, é artista visual e se interessa muito pelas relações criadas entre palavra e imagem, tem a escrita como atividade paralela ao seu trabalho de arte contemporânea
Dejetos - Angela Schnoor
Já estava na hora do Shopping fechar, mas precisava ir ao banheiro. Início de semana, tudo quase vazio, mas o marido estava viajando e aproveitou a noite para pequenas compras.
No silêncio ecoante do banheiro vazio, repara na recente reforma quando ouve uma discussão agressiva. Uma mulher chorava e ameaçava. Teve medo. Encolheu-se sobre o vaso sanitário, quase sem respirar. A outra voz parecia de homem. Pensou-se equivocada, pois o banheiro era exclusivamente feminino e, embora exaltado, o timbre lhe soava um tanto familiar. Não soube quanto tempo ficou ali, mas procurou sair bem depois que se calaram, ao ouvir a porta fechar.
Coisa desagradável, aquela discussão tão passional.
Chegou em casa e custou a acalmar-se. Conversou ao telefone, mas, só relaxou de fato quando entrou no quarto e viu o marido dormindo entre as cobertas. Aconchegou-se feliz, pois não o esperava tão cedo. Devia estar cansado, pensou. Ela bem que podia ter ficado em casa para recebê-lo...
Pela manhã, acorda cedo e capricha no café da manhã, mas ele sai apressado alegando pendências da viagem.
Na TV, o Jornal da manhã noticia um crime. Ia desligar quando ouve e fica alerta: 'no Shopping' - Mulher encontrada esfaqueada no banheiro.
Estremece. Quase chorando, pede para a vizinha, com quem conversou na véspera, que venha até seu apartamento. Enquanto espera, tenta se recompor e recolhe o lixo para incinerar. O saco rompe ao se prender na maçaneta. Pelo buraco aberto, uma manga de camisa aparece, ensanguentada.
Juventude - Eduardo Oliveira Freire
Quando Antônio beijou a mulher na boca, viu o olhar de repulsa do neto adolescente. Reconheceu-se nele quando jovem ao fazer o mesmo diante de casais de velhos namorando. Compreendeu o neto, pois grande parte dos jovens é conservadora.
Certidão de Óbito - Eduardo Oliveira Freire
Não acreditava que a noiva tinha morrido. Para se convencer, pedia toda semana uma nova certidão.
Quase um ano depois, pegou o documento e olhou para a jovem funcionária que lhe entregava o atestado todas as vezes. Convidou-a para um café.
Muito boa esta inauguração Babélica!
ReplyDeleteGrata Stefano!
Ficou bem bacana! Gostei de ter participado!
ReplyDeleteFantástica la presentación y los cuentos. Me encantó aunque no leo perfectamente el portugués... Te felicito Stefano, así como a los buenísimos autores...
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