(Pormenor do Monumento aos Descobrimentos de Portugal - Belém, Lisboa)
Babelicus
em português está aberto aos escritores de âmbito lusófono de
toda a parte do mundo: o site publicará semestralmente os melhores
contos e contos breves, entre os recebidos, que cumpram as regras
civis de respeito por outras culturas, religiões e ideias políticas.
Os autores não perdem os seus direitos autorais.
Podem
enviar os seus textos ao correio:
Stefano Valente stef.valente@tiscali.it
A
estalagem - José Eduardo Lopes *
O
velho caminhante sentia-se cansado de calcorrear durante horas sem
fim a mesma estrada, segurando uma candeeiro de mão cuja torcida
alimentada a azeite mal conseguia abrir uma diminuta clareira de luz
débil no seio da noite cerrada. Quando começou a pensar consigo
mesmo que já estava a caminhar há mais de dez horas, avistou uma
casa na berma da estrada com um candeeiro aceso suspenso no alpendre.
Devia ser uma estalagem. Havia uma carroça desarmada ao pé do
alpendre, e apesar do vulto caraterístico das cavalariças à sua
mão direita, não se sentia o odor da palha ou das fezes dos
cavalos, o que era estranho. Empurrado pelo seu próprio cansaço,
subiu as escadas do alpendre e franqueou a porta da estalagem. À sua
entrada levantaram-se as duas únicas pessoas que se encontravam no
salão do interior, um homem e uma mulher, ambos de meia-idade, que
se aproximaram animadamente de si e o cumprimentaram efusivamente,
com abraços e palmadas amigáveis nos ombros. “O negócio deve
andar fraco” – pensou com uns laivos de cinismo, mas logo o
fizeram sentar junto à lareira, onde uma panela de ferro fundido
estava suspensa de um gancho pela asa. Algo fervia no interior sob a
ação das chamas generosas, e o ar enchia-se do odor maravilhoso a
sopa, um cheiro antigo e familiar a beterrabas e a leite fresco.
Quase sentiu vontade de chorar, porque era um aroma que parecia
resgatado das memórias da sua infância, da casa humilde junto à
ponte do ribeiro, que tinha uma azinhaga larga ao lado onde brincava
com os irmãos, pontapeando bolas feitas de trapos, e a correr
enquanto faziam rodar arcos de ferro com a gancheta; e ficavam lá
até sentirem o aroma daquela sopa ou dos outros cozinhados da sua
mãe, que lhes indicava que eram horas da refeição, e corriam para
sentirem o seu abraço apertado antes de ela ralhar com eles para
irem lavar as mãos antes de se sentarem à mesa.
Enquanto
o estalajadeiro lhe punha a mesa próximo ao fogo, a senhora
sentou-se ao seu lado, reconfortando-o com a sua presença e com a
sua simpatia. Notou uma atenção preciosa aos detalhes, uma toalha
pequena de quadrados sobre uma banqueta, a sopa de aspeto delicioso
na tijela de louça, os talheres, e o pão Challah moldado
em feitio de trança. Aquela refeição podia ter sido na mesa da
casa da azinhaga, que não lhe notaria qualquer diferença.
Enquanto
saboreava o pão, reparou na primeira incongruência daquela
estalagem. O estalajadeiro usava um gorro enterrado até às orelhas,
mas vista de perfil, notava-se uma reentrância enorme no alto da
cabeça, como se lhe faltasse uma parte do crânio. Quando ia
comentar isso com a senhora ao seu lado, notou que um dos seus pulsos
exibia um corte comprido e profundo. Não tinha sangue à vista,
ainda que o corte também não parecesse cicatrizado.
-
Cortou-se a descascar as batatas? – perguntou.
Ela
riu-se, um riso alegre e claro que desarmou as suas inquietações,
embora não fosse seguida por nenhuma explicação. Recomeçou a
comer, e foi conversando com os seus anfitriões, falaram sobre
trivialidades - como as noites naquela terra pareciam não ter fim, e
como a maioria dos viajantes não paravam na estalagem, preferindo
teimar na sua caminhada, a ver se chegavam mais depressa ao destino.
As
pessoas hoje em dia não têm dinheiro, e também existe muito medo –
refletiu o caminhante – acho que existe medo de tudo, medo dos
perigos no caminho, medo do que as outras pessoas nos podem fazer,
medo de morrerem sozinhos na berma da estrada, sem aqueles que
deixaram para trás ou que, em vez disso, procuram reencontrar com a
sua viagem ansiosa.
Os
seus anfitriões concordaram consigo. Depois de ele acabar de comer,
sentaram-se os três numa área da sala mais afastada do fogo.
Acomodados em poltronas, degustaram café e conhaque, e o caminhante
sentiu-se impelido a voltar a falar.
Todos
os dias encontro coisas que me espantam, e emociono-me com elas ou,
para não parecer um exagerado, sinto uma viva alegria quando isso
sucede. Há pouco, a sopa que me serviram ao jantar reavivou-me a
memória da sopa que a minha mãe fazia nos tempos dourados da minha
infância, isto antes da guerra. Agora devo confessar que tendo
começado como marinheiro num vaso de guerra, continuei a minha vida
no mar quando acabou o serviço militar, fui paquete, arrais,
contratante, armador e como armador fiquei rico, mas nos primeiros
tempos ganhei uns cobres bons com o contrabando, contrabando de
bebidas e cigarros, mas também de armas. Não havia drogas nesse
tempo. Em Las Palmas tínhamos um associado que nos reservava sempre
umas garrafas de um conhaque especial para nós apreciarmos. As
garrafas nem tinham rótulo, mas o sabor era fantástico e posso
jurar-vos que é exatamente o mesmo sabor deste conhaque que agora me
serviram.
O
estalajadeiro foi buscar a garrafa e, com uma expressão divertida,
segurou-a pelo gargalo e fê-la rodar sobre o seu eixo. Esta garrafa
também não tinha qualquer rótulo e, pelo que se lembrava, era
idêntica às de Las Palmas na forma e na cor do vidro. O caminhante
afundou-se mais na poltrona, pensativo.
Ficou
então rico… - lembrou a anfitriã – o que é que sucedeu à sua
fortuna? Porque ei-lo aqui, com roupas boas e calçado feito à mão
mas a caminhar a pé, sem carro nem motorista.
-
Não sei o que sucedeu ao meu dinheiro… Todos os meus familiares
desejavam a minha morte para a herdarem, mas tive sempre sorte e
nunca o conseguiram…
Você
deve estar cansado – voltou a anfitriã – o seu quarto está
preparado lá em cima, devo avisá-lo de que não é nada de luxuoso,
mas talvez lhe faça lembrar algum dos seus quartos de outras Eras –
gracejou, ou pelo menos o caminhante queria acreditar que sim – o
seu quarto em Leipzig quando estudou para se formar, ou o seu quarto
de Potsdam, quando se pôs em campo para investigar o destino dos
seus irmãos nos campos nazis de extermínio – cada palavra dela
era como um golpe, uma surpresa que lhe tolhia o ar nos pulmões –
o melhor que tem a fazer agora é ir repousar um pouco e retomar a
sua viagem quando se sentir com forças. Mas há um favor que lhe
queríamos pedir…
-
Considerem-no feito... Qual é o favor?
O
estalajadeiro aproximou-se e, depois de verter dois dedos de conhaque
no seu copo, narrou o que pretendia dele:
-
Deve ter notado que esta não é uma estalagem comum, na verdade, nem
mesmo nós somos estalajadeiros. Chegamos como você, caminhando por
essa estrada longa e desesperante, e depois de aqui chegarmos, quem
nos recebeu seguiu o seu caminho e nós ficamos a cumprir o seu
papel. É isso que pretendemos de si, que fique aqui um pouco como se
fosse o dono da estalagem até chegarem outras pessoas, e então você
cede-lhes o seu lugar e retoma o seu caminho anterior…
-
Mas eu não consigo! – ainda protestou com veemência - eu nem sei
cozinhar, e quando faço uma cama, os lençóis e cobertores saem
todos do sítio como pétalas soerguidas pela brisa.
-
Não se preocupe com isso, quando chegar a altura você saberá o que
fazer. Seja uma pessoa ou um grupo de pessoas, um ancião ou uma
criança, você irá encontrar as palavras e os gestos que lhe forem
necessários para se desenvencilhar.
Concordou
em silêncio, ainda se debatendo com as suas dúvidas e os muitos
mistérios daquela estalagem - peixe dourado a sacudir-se num aquário
demasiado pequeno. Deram-lhe uma chave e subiu as escadas. O seu
quarto tinha já a porta aberta, entrou e reprimiu uma exclamação.
Era uma réplica – uma miragem? - do seu quarto de Leipzig, a
escrivaninha de tampo a um canto, o piano de cauda que a sua senhoria
conseguira entalar entre a cama e a janela, os canhenhos e livros
espalhados sobre o tampo do piano, e por todo o lado, o perfume e o
odor da pele de Larissa, e as suas peças de vestuário atiradas
sobre os móveis como peças de caça abatidas. Ouviu um ruído no
piso inferior, e voltou a descer as escadas.
O
casal estava quase a franquear a porta de saída, e parou quando o
viram. Aproximou-se deles, ainda era noite no exterior.
-
Digam-me só mais uma coisa, porquê tudo isto? Para quê esta
estalagem?
Ela
aproximou-se de si, pegou na sua mão e guiou os seus dedos para a
cicatriz que tinha no pulso. Ele sentiu-se quase assustado porque não
lhe pareceu que tivesse tato, não conseguia sentir nos dedos o
relevo e a comissura daquela ferida, como se não tivesse sensações
exteriores ao seu passado e à sua memoria
-
Não sabemos aquilo que nos espera – murmurou ela – se a
plenitude ou o vazio absoluto. O que sabemos é que é longo o
caminho quando se morre, e nesse caminho desolado e noturno todos
podemos precisar de um abrigo e de um abraço. E quando alguém se
frustra desta estrada comprida e procura um atalho, pode andar
indefinidamente em círculos até voltar à sua antiga casa, e
àqueles que conheceram em vida mas que já não são capazes de o
ver, desligados do que é e do que sente. Esta estalagem pode ser a
diferença entre completar a viagem com êxito ou errar para sempre
numa noite infinita.
O
caminhante assentiu em silêncio. Despediu-se dos dois amigos, e
ficou a vê-los desaparecerem no vale de sombras. Já não sentia
necessidade de descansar ou recuperar forças, preocupava-o mais
agora parecer um estalajadeiro, ser um estalajadeiro, com a casa de
portas abertas para receber o próximo viajante, como família, como
um filho que regressa.
* José
Eduardo Lopes nasceu em Moçambique, de onde se refugiou em Portugal
com 13 anos. Os primeiros contos que editou na Web eram inspirados na
escrita crua e forte de Raymond Carver. Muitas outras influências se
juntaram a esta, com realce para Mário-Henrique Leiria, Borges e
Cortázar. As suas histórias vão sendo escritas ao ritmo das ideias
e memórias que experimenta, e daquilo que o quotidiano ou a fantasia
lhe sugere.
O
seu blogue: Estrada
de Santiago
Toninho,
meu Caronte pessoal - Angela Schnoor *
No
final dos anos sessenta eu trabalhava em um estaleiro na Ponta da
areia - Niterói.
Com
horário flexível, ao terminar meu trabalho não usava a lancha da
empresa.
Precisava
atravessar uma faixa de mar entre a Ilha e a estrada que me levaria à
estação das barcas
para o Rio de Janeiro.
Esta
travessia era feita em um pequeno barco conduzido por um homem
simples e rude - encarquilhado
pelo efeito do sal marinho.
Toninho
usava um chapéu que cobria seu rosto tímido e conduzia o barquinho
empurrando-o
dentro da água através de um mastro que fincava no fundo do mar e
gerava o impulso.
Assim,
ele era o meu Caronte pessoal, embora o Rio de Janeiro não fosse,
ainda, o inferno em
que se transformou.
*
Angela Schnoor diz de si mesma: «Nasci
no Rio de Janeiro, Brasil, em março de 1944. Estudei e pratiquei a
psicologia por mais de 40 anos. Jamais desejei concorrer ou
participar de concursos. Como prêmios, a vida me deu duas
filhas e alguns netos que me enchem de orgulho e afeto. Senti-me
honrada quando amigos que encontrei através da Internet, traduziram
e publicaram contos meus. Quase diariamente conto histórias
que publico no blog Microargumentos. Além do psiquismo, as
imagens me encantam e sinto necessidade de contar o que percebo
em cada uma delas, mas não me sinto à vontade para escrever
autobiografias.»
O
seu blogue: Microargumentos
A
morte de César - João Ventura *
Rindo
às gargalhadas, César, Brutus e mais três senadores saíram de
rompante do Senado, aos tropeções, claramente embriagados. Um deles
contava uma história obscena que envolvia uma matrona, a sua filha e
um escravo núbio. As sentinelas puseram-se em sentido e César
respondeu-lhes com um arremedo de saudação militar.
Continuaram
a caminhar cambaleando, Brutus e César de braço dado, um dos outros
bebendo de um odre que trazia, com o vinho a escorrer pelos cantos da
boca, manchando de roxo a alvura da túnica.
O
cronomóvel, que tinha sido sincronizado para os 15 minutos que
incluiam a morte de César às portas do Senado, accionara a
microcâmara, que registava todos os pormenores.
Julio
César afastou-se alguns passos, inclinou-se e começou a vomitar. Ou
outros riram.
.................................................
O
Conselho Supremo da Guilda dos Historiadores ouvia a exposição do
Viajante. Um dos conselheiros exclamou:
-
Então não houve assassinato? e Brutus estava inocente?
-
Precisamente. Ao tentar endireitar-se, César tropeçou e caiu de
borco. Os outros tentaram ajudá-lo a levantar-se, mas estavam tão
embriagados que não conseguiram. Morreu afogado no seu próprio
vómito...
-
E o colega o que pretende fazer com esta informação?
-
Escrever um artigo para o International Journal of Verified
History, claro!
-
Era o que eu receava – disse o Presidente da Guilda, e apontando
uma pistola laser ao Viajante, disparou uma única vez.
Quando
os robots da limpeza levavam o corpo, comentou:
-
Era o que faltava, alterar a História com base numa simples
verificação in loco…
*
Português, gosta de escrever microcontos, mas por vezes arrisca-se a
estórias um pouco maiores... Tem publicado um pouco por aqui e por
ali, na Web e em antologias...
O
seu terreno preferido é a área do fantástico, mas não se preocupa
muito com rótulos, e é um devoto confesso da Fantástica Trindade
(Borges, Calvino & Cortázar).
Gosta
de livros em papel.
Chamaram-lhe
tempo - Ana Carvalhosa *
Chamaram-lhe
tempo, um tempo de escorrer na rua a chuva das lágrimas de existir,
mas chamaram-no para lhe dizer que havia horas para sorrir, nos
cômputo dos anos registadas as estações, era um... ir e vir de
estados únicos, somente emoções, perdidos em minutos de não
esquecer, foram abraços, e saudades, beijos a não perder, sobre as
lágrimas, vontades de voltar a acontecer, chamaram-lhe de tempo, só
para se puder contar, que o tempo é somente o existir, quando
parado, sobre o plátano do jardim, ou o cedro da floresta, recebendo
o vento da paisagem e soprando para outras paragens, tempos que se
usam, a bem dizer, para estar no tempo que se tem a ter.
*
Ana carvalhosa - Portugal - Lisboa - 1966; define-se amante da
palavra simples, e do sentir de tudo.
Nariz
Assassino - Samir Karimo *
Embora
pareça um verdadeiro conto gogoliano, há quem diga que é a
continuação das sagas do Major Kovaliov e do nariz, mas não, toda
a menção à dita obra é pura ficção surreal.
Neste
mundo artificial, ligado inalambricamente a todo o lado, as pessoas
têm acesso a tudo… tudo se compra, tudo se vende, tudo se
fotocopia, tudo se imprime, então noutro dia estava numa daquelas
lojas de conveniência e vi que vendiam narizes artificiais postiços
para quem não gosta do próprio corpo, se as mulheres podem
siliconizar-se então os homens podem usar também narizes
artificiais para captar melhor a essência feminina…Neste mundo
virtual onde tudo se implanta decidi implantar a invenção, a
máquina captadora de espirros para aproveitar o muco humano e
transformá-lo em energia mas as coisas não correram como bem queria
e então certa noite descobri que o nariz era a encarnação de um
assassino que farejava as vítimas na Londres vitoriana …
quando estou a dormir sai do meu corpo e como se trata de um implante
nem dou por isso até, então, como dizia, inala as vítimas,
enfia-se dentro delas com uns tentáculos que saem das narinas,
aquilo que chamamos pelos do nariz são os tentáculos do
RANHOKITUS, e com ajuda do cachecol de Jack, o estripador,
ambos querem levar o mundo à extinção. Cheguei mesmo a descobrir
que o cachecol tem vestígios de sangue de Jack e através de
artimanhas tecnológicas consegue seduzir e arranjar as vítimas para
aquele líder alienígena. O cachecol funciona como um portal
interdimensional, criando hologramas a cinco dimensões e tem
gps para se orientar pelos destinos e mundos alternativos …
já não sei o que fazer…. Estão a matar-me,
socorro!
*
Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e em Tradução,
desde sempre foi apaixonado pelo mundo fantástico. Atualmente é
tradutor e escritor. Dos textos traduzidos salienta-se a Loucura
de Deus de
Juan Miguel Aguilera, como autor destacam-se os
contos Delírios Fantasmales, que
saiu na Antologia
Fénix de Ficção Científica e Fantasia - Volume II, e Santa
Claus Sideral y la Gota de oro Navideña, que
saiu na Antologia
Fénix de Ficção Científica e Fantasia - Volume III,
o poema Sedução que
saiu no Poemário
2015 da
Pastelaria Studios. Como
S.Nodier publicou e traduziu uma antologia dos melhores contos de
Charles Nodier (Contos
Infernais de Charles Nodier,
2013). Em 2015 publicou a versão em castelhano e em português do
seu livro de originais chamado Sobrenatural,
do qual é tomado esse conto.
Pedido
de ajuda - Vítor Leite *
Estou
a escrever um livro e uma personagem fugiu. Já foi visto por aqui e
por ali, e, também em parte nenhuma. Não é uma grande personagem,
mas é alto. Não é gordo nem feio, embora não se possa dizer que é
magro, muito menos bonito. Não é perigoso, repito: não é
perigoso. Anda sempre bem despido. Fala pouco e sempre em letra
minúscula. Representa muito para mim, penso mesmo que só terá
representado para mim.
Caso
o encontrem, pousem-no na água e soprem, ele virá. Desde já muito
agradeço a atenção dispensada.
*
Diz de si mesmo: «Sou português, de Leça da Palmeira, uma pequena
localidade bem perto da cidade do Porto, onde há sempre vento que
despenteia as ideias. Gosto de escrever pequenas histórias, as mais
extensas ficam sempre por terminar! Participei em uma ou duas
antologias, em papel, para além disso quase nunca publiquei nada do
que escrevo. Participo regularmente e por divertimento em desafios
literários.»
Lua
Nova - Angela Schnoor
Tinha
pouco tempo naquele formato para que não fosse logo percebida.
Andava curiosa sobre aquele livro que via através da janela e levava
seu nome. Embora detestasse ler por partes, foi a maneira
que encontrou para ler sem ser vista. Todo mês, quando minguava,
entrava entre as páginas e se deliciava com as fantasias que os
humanos faziam em seu nome.
Explosão
– Eduardo Oliveira Freire *
– Doutor,
a vida é uma explosão. Os meus ouvidos doem. Eu até ouço o
estrondo das sementes rompendo a terra e emergindo na superfície.
Não existe calmaria, o bombardeio está em toda parte. Até os
pensamentos fazem barulho e o próprio silêncio. Por isso, procuro
mergulhar num espaço vazio para que os meus ouvidos descansem. Eles
estão doendo muito. Quero paz, entende? Quero fugir do turbilhão de
sons que me invade todos os dias. A violência é inerente a todos os
seres vivos, mas eu quero viver num mundo como os desenhos animados
que assistia quando criança, em que todos os bichos do bosque eram
amiguinhos. Por que a realidade não pode ser assim? Até o
nascimento é um ato violente, rompendo entranhas maternas e cascas
de ovos. Não consigo me acostumar com isso, doutor. Queria que todos
nós fôssemos amiguinhos de mãos dadas correndo pelos campos
verdejantes. Por que não podemos ser assim, doutor. Você me ouve?
Está tão inerte... A arma que carrego é de brinquedo. Não fica
preocupado, é que eu queria matar saudade dos tempos de moleque,
quando brincava de bang bang com meus colegas da escola e da rua.
*
Eduardo Oliveira Freire, brasileiro, formado em Ciências Sociais e
aspirante a escritor. Gere os
blogs http://dudv-descarrego.blogspot.com.br e http://cronicas-ideias.blogspot.com.br
Caminho
Marítimo para a Europa - Vítor Leite
Aquele
não era um dia igual aos outros. Como sempre, depois do trabalho
enfiava-se na biblioteca nacional, e era como se ficasse desaparecido
durante meia dúzia de horas, até fechar os livros, pegar na sua
mochila e seguir caminho para casa, a comer um pão com qualquer
coisa dentro. No metro, sentava-se sempre junto da janela, na última
carruagem, quase sem ninguém dado o adiantado da hora. Ao andar
junto das paredes assustava-se sempre com uma sombra, com um ruído
vindo de baixo de um carro ou de dentro de uma casa.
Naquele
início de noite chegou à rua e nem fechou a porta, como sempre
fazia. Passou a porta e parou, a porta foi atrás do seu corpo, por
pouco o atingiu. O estrondo que se ouviu passou junto das suas
orelhas mas ele não se encontrava ali, estava transformado numa
estátua, embora ainda não tivesse cócó dos pássaros na cabeça e
nos ombros. A refazer-se do choque, sentia uma náusea, uma terrível
dor de peito, uma vontade de virar o seu interior para fora. De
repente deu três, quatro passadas para o lado, deixou cair a mochila
atrás de si, encostou a mão na fachada do edifício e vomitou.
Libertou uma pasta qualquer, mas nem encontrou coragem para analisar
que restos ficaram no chão, mas aquele mal-estar não acabou ali.
Antes
de avançar esta história convém apresentar, minimamente, esta
personagem, homem de quarenta e nove anos, casado, mas a viver
separado da sua família. Vive numas águas-furtadas com vista para
outros telhados, não podendo abrir as janelas devido ao forte cheiro
da merda dos pássaros. Sendo alérgico a tudo e mais alguma coisa,
convém não se aproximar muito do telhado repleto de pombas. Tem
vertigens. A casa resume-se a uma sala que tem cozinha e uma cama, e,
partilha o sanitário lá do fundo, com outras pessoas que não
conhece. A coisa mais sexy que teve nos últimos anos foi encontrar
pelos púbicos na banheira.
Desde
o seu divórcio que tinha muito mais tempo para as suas investigações
históricas, e como fazia diariamente nos últimos anos, também
naquele fim de tarde esteve a consultar livros antiquíssimos
relativos às navegações dos marinheiros que viraram costas ao Tejo
e foram, sem saber bem para onde, simplesmente partiram. Sabia todas
as histórias desses homens, que iam com um pé no barco e o outro no
fundo do mar, as suas vidas, as idas e voltas, sabia tudo. Idolatrava
um tal Pedro Alvares Cabral com quem mantinha enormes e profundos
diálogos. Nesse dia, com luvas brancas, tinha consultado um livro de
mil e quinhentos e qualquer coisa onde acabou por descobrir umas
cartas, possivelmente, dirigidas a um familiar desse Pedro. Na
verdade as cartas não se encontravam endereçadas, ou melhor
dizendo, direcionadas a ninguém em particular, e ao fim de cinco
minutos ele tinha a certeza absoluta terem sido escritas para si.
Estamos
no ano de 2016 na cidade de Lisboa, ele trabalhava como funcionário
público, daqueles rodeados de papel, resmas de papel e era
historiador nos tempos livres, não dava ouvidos às notícias de
nenhuma crise, vivia ausente do presente. Era feliz sendo íntimo
desse tal Pedro. Quando alguém perguntava “Mas esse já morreu,
não?”, ele começava a falar de algo que só ele conseguia ver e
descrevia uma vida inteira com os pormenores mais ínfimos, ponto por
ponto, vírgula por vírgula. Se ninguém o mandasse calar, ao fim de
quatro horas, calava-se, pedia desculpa e só voltava a falar quando
alguém lhe dirigia alguma pergunta relacionada com a temática da
navegação. Vivia o seu silêncio como se fosse um qualquer estado
de transe, longe do sol, nunca navegava na luz de Lisboa, não sentia
na pele o prazer de ser abraçado pela luminosidade que salta das
pequenas pedras que desenham todo o pavimento da cidade. Pisava o
chão mas também podia pisar bosta, ou seja, preocupava-se mais em
andar no passado do que onde colocava os seus pés. As casas nas ruas
é que o levavam para onde ele queria, o chão estava lá, mas podia
bem nem existir.
Naquele
momento ele sentia o desmoronar do seu mundo de conhecimento, cada
uma das camadas de saber que ele diariamente e cuidadamente
acrescentava em cada fim de dia. Quando todos corriam para as suas
casas, este pequeno homem, dentro de um chapéu, atrás de um pequeno
bigode e de uns óculos redondos perdia-se em velhos livros e papeis
semi-comidos. Lia e relia a história, ficando com anos e anos bem
arrumadinhos na sua cabeça, cada episódio pousado sobre outro
acontecimento, tudo era estabilidade e tranquilidade. Camadas e
camadas de conhecimento, muitos mil milhões de folhas de
conhecimento.
Novamente
pousou as mãos na fachada da biblioteca, como se quisesse movê-la,
e ali verteu mais do seu interior. Dentro de si já não restava
nada, mas o corpo ainda se contorcia e nada acontecia, nem um resto
de… Nada! Começou a andar, ou melhor a arrastar os pés até casa,
apoiando uma mão nas paredes que o acompanhavam ao longo da rua.
Parou e voltou atrás para levar a mochila. Ao entrar na rua de Trás,
onde ficava a sua habitação, viu que a sua mão estava quase em
sangue, retirou a chave do bolso e abriu a porta, correu escada
acima. Caiu uma duas, três vezes, e ao chegar lá acima, ficou mesmo
de joelhos. A custo levantou-se, entrou em casa e ainda de casaco
agarrou no telefone, fechou os olhos e com o indicador começou nove
um oito sete… Aguardou 4,6 segundos, uma eternidade e disparou:
-
Sim?! Ouve, sou eu, desculpa ligar a esta hora, mas preciso
urgentemente de falar, dá-me um segundo da tua vida, só um! Hoje,
sabes, hoje… hoje devorei uma carta do Pedro…
-
Bem sei! Desde que nos separamos que devoras a vida desse! –
Interrompeu ela.
-
Não, não é bem isso, hoje devorei mesmo uma carta dele! É sobre
isso que te quero falar…
-
Agora? Já estava deitada! Não podemos falar amanhã?
Silêncio.
Ela continuou:
-
Desculpa, mas, agora não, falamos outro dia, ligo-te amanhã ou
depois!
-
Isso! Sim, depois, sempre depois. Depois do depois o que resta?
Desligou
o telefone e ficou um silêncio espesso como a noite lá fora. Estava
só, cada vez mais isolado. Sabia disso como ninguém. Deixemos a
literatura para os escritores e analisemos os acontecimentos
históricos. Posso dizer que nunca mais se falaram, também podem
ficar a saber que deixou de aparecer no trabalho.
Ao
fim de uma semana, voltou a entrar em casa a correr, olhou em volta,
uma e outra vez, e empurrou a mesa para junto da janela. Com a camisa
fora das calças, agarrou em papel e num lápis, e, com o pé puxou
uma cadeira meia desmanchada, acabando a cena com o atirar do seu
corpo para cima dessa cadeira. O esgar que saiu da sua boca e o
ranger da cadeira foram os últimos sons que se ouviram antes de
começar um leve rosnar do lápis sobre o papel. O papel branco tinha
uma pequena mancha de sangue ou talvez um resto de comida, tipo uma
impressão digital, que possivelmente a sua mão havia deixado. Ficou
imóvel a olhar para aquela marca. Arrastou a cadeira para trás e
para a frente, procurou uma melhor posição e começou a escrever:
“Hoje,
como nas últimas três noites vi o sol nascer. Os meus olhos não se
fecham desde terça-feira, quatro dias e três noites, sinto-me mal,
muito mesmo. Na biblioteca nacional descobri uma carta do Pedro a
falar na existência de uma ilha.
Fala
num índio de nome Semvolta que tinha vindo do sol poente,
acompanhado de mais três homens e quatro mulheres e tinham-se
instalado juntamente com a população do nosso velho reino. Não
trouxeram nenhum deus nem procuraram levar ouro. Não tinham armas, e
carregavam sonhos, não queriam vender nem comprar pessoas, não
pretendiam matar gente, muito menos destroçar futuros, desconheciam
por completo a palavra “ódio”. O Semvolta veio com a sua
Gatavadia, descobriram o caminho marítimo para a Europa. Vieram do
lado onde o sol dorme, confirmar, como diziam os velhos da sua terra,
se o sol vem mesmo do lado do mal, pois atrás do sol virá o mal,
diziam eles. Naquele texto nada explicava o modo como tinham iniciado
a comunicação entre as duas culturas, também não falava nos
barcos que os tinham trazido até ali.
-
A!... sinto a morte chegar, ouço os seus passos, os seus longos
braços a envolverem-me! O seu bafo no meu pescoço provoca-me
arrepios. Isto, digo-te eu!
Dizia
Pedro a meio do texto que o povo do Semvolta viria atrás de si para
viver neste mundo novo, se os deixassem partir, pois já sabemos que
nestes momentos há sempre uma mão que se sobrepõe à razão e
cobre a luz. Só oito tinham partido e estavam numa ilha cheia de
sol, calor e gente afável, mas mais viriam. Numa noite de bebedeira,
Semvolta contou, sempre por gestos e desenhos, como era a sua terra,
e quando disse que as mulheres andavam nuas despertou muitas
atenções. A assistência rejubilou de alegria, com aplausos e
assobios. As notícias chegaram rapidamente a muitos ouvidos, mas
logo se disse que era tudo uma história de fundo de copo. Era tudo
fruto do vinho. Passados dois dias já ninguém se lembrava de nada,
nem se sabe onde fica a tal ilha. Como se a chuva tivesse lavado todo
o enredo, tudo ficou no esquecimento. Será? Ou, foi desde aquele
momento que Pedro decidiu ir ver a cama do sol? Ninguém confirma,
mas Pedro Partiu.
As
embarcações dos portugueses, conforme ficavam vazias de gente e de
alimentos iam sendo ocupadas pelo ódio, e aqueles indígenas que
tinham vindo bem antes dos portugueses chegarem lá, tão despidos de
tudo, ali estavam, sem procurar nada, somente a viver o momento e as
pessoas, aprendendo. Muito provavelmente terão seguido o seu
caminho, completando a volta ao mundo. Fiquei sem perceber como
chegaram, se partiram, se a viagem acabou na ponta de uma faca, se um
padre os espetou numa cruz. Pedro não disse nada, e eu calei a sua
mão.
Sabes,
voltei à biblioteca e entre prateleiras arranquei a folha com a
letra desenhada pela mão do Pedro e comi-a. Mastiguei e engoli. Era
horrível, de sabor, mas pior ainda de conteúdo, quase igual a
muitos romances desta nova literatura, uma história sem fim, onde o
leitor podia imaginar o que bem entendesse. Começava logo por não
localizar a ação, falava numa ilha, mas qual? Onde estava agora
essa ilha? Mas pior que tudo, dizia que tinham sido outros os
primeiros a atravessar o Atlântico, outros que não nós! Ninguém
podia sequer imaginar essa inversão da história. Não deixei! Mas
agora estou mal.
-
Vou morrer, sinto e digo-te eu, sim, sei que é neste preciso
moment____” (e a linha continuava até ao limite lateral da
folha).
A
autópsia concluiu que o seu corpo tinha sido devorado, sim, isso
mesmo: roído!, desde o interior por um vírus hiper perigoso,
estranho e aparentemente desconhecido. Era aconselhado não haver
contacto nenhum com o corpo. Assim, foi hermeticamente fechado e
encaminhado para a cremação.
Acabada
a cerimónia, a mulher dirigiu-se a casa do ex-marido, estava na hora
da chegada dos homens das mudanças. Ding dong, dirigiu-se à porta,
“boa tarde” e entraram quatro homens, melhor dizendo quatro
barrigas, de braços mais gordos que musculados, todos de fartos
bigodes e barba de três dias. “Onde está a mesa, minha senhora?”
Ela desviou os olhos da janela e sorriu, “naquele canto, por favor,
venham!”. Dirigiu-se para a mesa onde o seu ex vivia na história.
Os homens começaram a reclamar pois não iriam arrumar a papelada,
que tudo o que era para levar devia estar pronto, e mais um palavrão
e mais uma reclamação.
-
Não tem qualquer problema! Podem levar, já! – Disse ela
empurrando o monte de folhas para o saco preto de lixo.
Levaram
o mobiliário todo e as roupas também, ela amarrou o saco preto,
atirou-o para junto da porta de saída e sacudiu as mãos, uma na
outra. “Ah! Falta a porcaria da gata…” Falava sozinha,
aproximou-se de uma janela e começou a chamar como se cantasse alto,
“Btch tch miau, gata? Xiuxiu bixaninha… Vem cá minha gatinha.
Btch vem cá minha gata vadia!”
Assistimos
à perda definitiva das referências a essa inacreditável carta de
Pedro Alvares Cabral. Será que, como nos filmes, a mulher ainda vai
pôr a cabeça dentro do saco para confirmar da validade daquela
papelada toda? E a carta que ele deixou? Tudo perdido dentro de um
saco preto, com viagem marcada para um aterro qualquer. Ele, meio
historiados, podia ter saído do bolso do Fernando Pessoa, caso esse
escritor tivesse existido na realidade, e não fosse uma soma de
heterónimos. O nosso historiador morreu sem viver e destruiu o
segredo da navegação à volta do mundo, a descoberta do caminho
marítimo para a europa! Perdeu-se uma vida como se perde um comboio
ou uma paixão, e, no final ficámos ser perceber como o Semvolta
apareceu na ilha, “Qual ilha?” pergunta alguém, mas a carta onde
Pedro tinha explicado algumas coisas, perdeu-se nas entranhas do
nosso homem que viveu e morreu sozinho.
Liberdade
é um conceito complexo para personagens - Angela Schnoor
Escrevia,
mas não nominava suas criaturas. Deixava que fossem livres e jamais
decidia sobre suas vidas. Quando, exausto, dormia sobre suas
anotações e as personagens fugiam, sendo captadas
por escritores que lhes impunha nome e destino.
Silly
Season - João Ventura
Adriano,
o jornalista de serviço na estação XXL, estava preocupado: para o
noticiário das 8 tinha recebido quatro notícias das agências, às
9 só tinha tido duas, às 10 uma e tinha conseguido respigar
um fait-divers de um dos matutinos. Às 10 e trinta
e cinco, era claro que as fontes de informação tinham secado, isto
é, nada acontecia, e Adriano começou a ficar angustiado ante a
perspectiva de chegar ao noticiário das 11 sem ter notícias para
dar, o que seria um acontecimento inédito na XXL (“a estação
sempre em cima do acontecimento! Pam! Pam! Pam!”).
Às
10 e 45 tomou uma decisão: tinha de haver pelo menos uma notícia.
Meteu no leitor um CD dos Ugly Boys, começando com a faixa “There’s
going to be trouble”. Olhou em volta, viu o cinzeiro de pé alto,
tomou-lhe o peso. Com o cinzeiro bem agarrado na mão esquerda
(Adriano era canhoto) saiu do estúdio, desceu a escada e quando
chegou à rua, observou com ar apreciativo a fila de carros
estacionados ao longo do passeio. Metodicamente, usando o cinzeiro
como uma clava, foi deixando marcas em todos: o BMW azul ficou com o
pára-brisas estilhaçado, o Corsa com uma porta metida dentro, o
Peugeot sem o farol direito e o vidro de uma janela, e assim
sucessivamente, vidros partidos, chapa amolgada, sem verdadeiramente
apontar, limitando-se a dar balanço ao cinzeiro e fazê-lo bater
como calhava. Ao fim de 12 ou 13 parou, deu meia-volta e regressou
calmamente ao estúdio. Vários populares se aproximavam agora dos
carros danificados e ao fundo da rua despontavam o subchefe
Eleutério, ainda a abotoar os botões do blusão e o guarda Rodolfo,
que alguém tinha ido chamar à esquadra, a dois quarteirões de
distância.
Quase
em cima das 11, Adriano meteu a publicidade do alinhamento, o
indicativo do noticiário, o sinal horário, e com a sua voz bem
timbrada começou:
Há
poucos minutos, por razões ainda não esclarecidas, um indivíduo
danificou várias viaturas estacionadas ao longo da Rua das
Sardinheiras. Para o efeito utilizou um objecto pesado, que algumas
testemunhas disseram tratar-se de uma barra de ferro.
Fez
uma pequena pausa e ouviu, através da porta entreaberta da cabina,
as pancadas na porta do estúdio, com uma firmeza que claramente
identificava o braço da Lei. Então concluiu a notícia:
A
PSP tomou conta da ocorrência e procede a diligências no sentido de
identificar o autor deste acto de vandalismo. Em próximos
noticiários, a XXL apresentará os novos desenvolvimentos deste
caso. E agora, mais uma faixa do último trabalho dos Ugly Boys:
“It´s all over, baby!”.
Enquanto
se levantava para ir abrir a porta, Adriano sentia-se orgulhoso:
tinha conseguido evitar o pior dos males – um noticiário sem
notícias! – e tinha inclusivamente deixado matéria para o colega
que viria rendê-lo daí a pouco. Nas consequências que viriam para
si próprio nem pensava. Tendo sido o melhor aluno do Curso de
Jornalismo, ainda conseguia citar de memória o parágrafo inicial do
manual da disciplina “Ética Profissional”: Na sua missão
sagrada de informar o público, o jornalista tem por vezes de fazer
sacrifícios pessoais…
Amor
Surreal - Vítor Leite
Queria
estar morto sabendo que a eternidade dura três segundos, a olhar e
ver que chegas dentro de um sorriso, com a minha língua ainda
esquecida no teu pescoço, com um rasto dos meus beijos atrás de ti.
Desconheço horas dentro desta escuridão, muito menos norte, nem
limites! A respiração ofegante diz que vamos chegar quando o corpo
diz que não querer parar. Corpos que procuram fundir-se, pudessem
eles e seriam o resto de um qualquer vulcão, estátua eternamente
fixa. Memórias sublinhadas pelo corpo, a pele na pele, como se
fosses só mão a asfixiar este corpo, como se eu fosse todo mão a
envolver o teu corpo, um polvo, um ar asfixiante, um calor do
deserto, uma memória… o que fica dos carinhos da tua pele na
minha, da minha na tua, um pequeno salto para a eternidade não mais
do que esta cama, um mundo mínimo neste presente eterno, que acaba
em três segundos.
Queria
tanto saber-me morto nesses teus braços, onde vivo. Saber-te feliz
depois de clareares por dentro, e falares do passado, dessa
eternidade maior que míseros segundos. E sorris ao olhar as sombras,
este mar, e sorris ao procurar nuvens objecto. Sorris ao olhar tantos
dedos que já foram tão poucos. Estremeces ao questionar “para quê
e agora?”, e arrepiada ao sentir o vento a passar viras-te rápido
à procura dos lábios que te sopram. Sim, a eternidade já começou,
bem mais longa que o prometido.
Queria
estar morto sabendo que a eternidade dura três segundos. E viver
cada segundo como não houvesse um outro, como houvesse sempre
escuridão com a nossa cama lá dentro. Não! Sem segundos, sem
relógios, sem sombras, só vida em dois corpos, e os teus braços
onde vivo, os meus que te esperam e te agarram como se a eternidade
estivesse aqui e aqui acabasse.
Imagino
o início do meu corpo onde me tocas. Ilusão.
E
tu longe e os teus braços aqui. Chegas, por certo sem cabeça e eu
vejo-te num sorriso, e tu longe com a minha língua ainda esquecida…
e agora, queria tanto estar morto nesse meu colo se a eternidade não
passar de três segundos…
Fecho
as gavetas todas, todas! Não pretendo ser mais o teu sol, esse
objecto intermitente, quero ser luz, estar presente e constante.
Estás mais bonita hoje, ouço, como se não mexesse a boca, como
dito por qualquer outro. Quantas bocas estão aqui? Fechadas as
gavetas todas, ficamos os dois, ou somente eu e tu? Sim, os dois e a
vontade de estar morto desconhecendo que essa eternidade terá
acabado.
A
menina 'boazinha' - Angela Schnoor
Sempre
usou máscara de anjo. Naquele dia em que seu pai brigou
por uma travessura, ela entrou no mar e se afogou. Foi a maior
culpa dentre as muitas provocadas em sua breve existência.
Dionisio
e os relógios - João Ventura
Dionísio
começou um dia a não gostar de relógios. A achar irritantes
aqueles objectos, que insistiam em modificar o ritmo segundo o qual
ele gostava de viver.
O
relógio de pulso foi o primeiro: mesmo capaz de funcionar a 60
metros de profundidade (tinha sido comprado quando Dionísio era
praticante de caça submarina) não sobreviveu à acção do
triturador da cozinha. Em boa verdade, este também não, porque a
caixa do relógio era de aço inox de alta resistência.
Aos
outros dois relógios que repousavam pacificamente na gaveta da
mesa-de-cabeceira, nem o facto de estarem parados (eram modelos já
antigos, mecânicos) lhes valeu: quando foram parar ao caixote do
lixo, a acção do quebra-nozes já os tinha tornado irreconhecíveis.
No entretanto, caminho semelhante tinha seguido o relógio de parede
da cozinha (previamente esquartejado com o cutelo dos bifes). Os
relógios digitais do micro-ondas e do forno do fogão foram
cirurgicamente apagados com o picador de gelo.
Até
este ponto, a esposa de Dionísio foi conseguindo gerir o medo que
lhe provocava o comportamento anómalo do marido. Mas quando o seu
relógio de pulso preferido (caixa em ouro de 18 quilates, prenda de
casamento de um tio já falecido) foi aterrar na lareira acesa, meteu
meia dúzia de peças de roupa numa mala e foi para casa dos pais,
felizmente ainda vivos. Ele está louco, mamã, soluçava
a pobre senhora. De facto, acender a lareira num dia de Agosto em que
o Instituto Meteorológico assinalava uma temperatura de 41 ºC
dificilmente deixava lugar a outro diagnóstico.
E
assim Dionísio continuou eliminando todos os sinais de contagem do
tempo. Ainda tentou alvejar com uma carabina de pressão de ar o
relógio da torre da igreja que se via da janela da sala, mas
verificada a inutilidade desse esforço, resignou-se a correr os
pesados cortinados para o afastar da vista.
Afundado
num sofá, na sala quase às escuras, Dionísio tinha sossegado, o
silêncio à sua volta actuando como um calmante para o seu cérebro
cansado. Foi então que do núcleo mais central desse silêncio
começou a surgir um ritmo, um batimento, uma pulsação regular,
como se um monstruoso relógio se tivesse instalado dentro de si
próprio. Quando teve consciência da origem daquele pulsar
terrificante, Dionísio soube o que tinha a fazer. Como um autómato
telecomandado, levantou-se, foi à cozinha, trouxe a faca de
trinchar, tornou a sentar-se no sofá, procurou no lado esquerdo do
peito o local onde o batimento era mais forte, apoiou aí a ponta da
lâmina e lenta mas firmemente, empurrou a faca. Nos breves instantes
até perder a consciência, Dionísio sentiu uma paz a invadi-lo,
como se finalmente o tempo estivesse a parar...
Foi
com essa expressão pacífica no rosto, como se dormisse, que a
polícia, alertada pelos vizinhos, o foi encontrar três dias depois.
Parabéns Stefano! Esta edição está maravilhosa. Um louvor especial ao fantástico Jose Lopes, escritor completo, pelo belo português e pelas ideias originais. Um abraço a todos.
ReplyDeleteEdição belíssima
ReplyDeleteMuitos parabéns ao Stefano pela edição e tenho muito prazer em ver textos meus na companhia de outros, de autores muito entusiasmantes de ler. Parabéns para todos nós.
ReplyDelete