Ezine internacional de cuentos en lengua original.

Ezine internacional de contos em língua original.

Ezine international de récits en langue originale.

Wednesday, 6 July 2016

BABELICUS EM PORTUGUÊS Número 2

(Pormenor do Monumento aos Descobrimentos de Portugal - Belém, Lisboa) 

Babelicus em português está aberto aos escritores de âmbito lusófono de toda a parte do mundo: o site publicará semestralmente os melhores contos e contos breves, entre os recebidos, que cumpram as regras civis de respeito por outras culturas, religiões e ideias políticas. Os autores não perdem os seus direitos autorais.

Podem enviar os seus textos ao correio:
Stefano Valente stef.valente@tiscali.it



A estalagem - José Eduardo Lopes *

O velho caminhante sentia-se cansado de calcorrear durante horas sem fim a mesma estrada, segurando uma candeeiro de mão cuja torcida alimentada a azeite mal conseguia abrir uma diminuta clareira de luz débil no seio da noite cerrada. Quando começou a pensar consigo mesmo que já estava a caminhar há mais de dez horas, avistou uma casa na berma da estrada com um candeeiro aceso suspenso no alpendre. Devia ser uma estalagem. Havia uma carroça desarmada ao pé do alpendre, e apesar do vulto caraterístico das cavalariças à sua mão direita, não se sentia o odor da palha ou das fezes dos cavalos, o que era estranho. Empurrado pelo seu próprio cansaço, subiu as escadas do alpendre e franqueou a porta da estalagem. À sua entrada levantaram-se as duas únicas pessoas que se encontravam no salão do interior, um homem e uma mulher, ambos de meia-idade, que se aproximaram animadamente de si e o cumprimentaram efusivamente, com abraços e palmadas amigáveis nos ombros. “O negócio deve andar fraco” – pensou com uns laivos de cinismo, mas logo o fizeram sentar junto à lareira, onde uma panela de ferro fundido estava suspensa de um gancho pela asa. Algo fervia no interior sob a ação das chamas generosas, e o ar enchia-se do odor maravilhoso a sopa, um cheiro antigo e familiar a beterrabas e a leite fresco. Quase sentiu vontade de chorar, porque era um aroma que parecia resgatado das memórias da sua infância, da casa humilde junto à ponte do ribeiro, que tinha uma azinhaga larga ao lado onde brincava com os irmãos, pontapeando bolas feitas de trapos, e a correr enquanto faziam rodar arcos de ferro com a gancheta; e ficavam lá até sentirem o aroma daquela sopa ou dos outros cozinhados da sua mãe, que lhes indicava que eram horas da refeição, e corriam para sentirem o seu abraço apertado antes de ela ralhar com eles para irem lavar as mãos antes de se sentarem à mesa.
Enquanto o estalajadeiro lhe punha a mesa próximo ao fogo, a senhora sentou-se ao seu lado, reconfortando-o com a sua presença e com a sua simpatia. Notou uma atenção preciosa aos detalhes, uma toalha pequena de quadrados sobre uma banqueta, a sopa de aspeto delicioso na tijela de louça, os talheres, e o pão Challah moldado em feitio de trança. Aquela refeição podia ter sido na mesa da casa da azinhaga, que não lhe notaria qualquer diferença.
Enquanto saboreava o pão, reparou na primeira incongruência daquela estalagem. O estalajadeiro usava um gorro enterrado até às orelhas, mas vista de perfil, notava-se uma reentrância enorme no alto da cabeça, como se lhe faltasse uma parte do crânio. Quando ia comentar isso com a senhora ao seu lado, notou que um dos seus pulsos exibia um corte comprido e profundo. Não tinha sangue à vista, ainda que o corte também não parecesse cicatrizado.
- Cortou-se a descascar as batatas? – perguntou.
Ela riu-se, um riso alegre e claro que desarmou as suas inquietações, embora não fosse seguida por nenhuma explicação. Recomeçou a comer, e foi conversando com os seus anfitriões, falaram sobre trivialidades - como as noites naquela terra pareciam não ter fim, e como a maioria dos viajantes não paravam na estalagem, preferindo teimar na sua caminhada, a ver se chegavam mais depressa ao destino.
As pessoas hoje em dia não têm dinheiro, e também existe muito medo – refletiu o caminhante – acho que existe medo de tudo, medo dos perigos no caminho, medo do que as outras pessoas nos podem fazer, medo de morrerem sozinhos na berma da estrada, sem aqueles que deixaram para trás ou que, em vez disso, procuram reencontrar com a sua viagem ansiosa.
Os seus anfitriões concordaram consigo. Depois de ele acabar de comer, sentaram-se os três numa área da sala mais afastada do fogo. Acomodados em poltronas, degustaram café e conhaque, e o caminhante sentiu-se impelido a voltar a falar.
Todos os dias encontro coisas que me espantam, e emociono-me com elas ou, para não parecer um exagerado, sinto uma viva alegria quando isso sucede. Há pouco, a sopa que me serviram ao jantar reavivou-me a memória da sopa que a minha mãe fazia nos tempos dourados da minha infância, isto antes da guerra. Agora devo confessar que tendo começado como marinheiro num vaso de guerra, continuei a minha vida no mar quando acabou o serviço militar, fui paquete, arrais, contratante, armador e como armador fiquei rico, mas nos primeiros tempos ganhei uns cobres bons com o contrabando, contrabando de bebidas e cigarros, mas também de armas. Não havia drogas nesse tempo. Em Las Palmas tínhamos um associado que nos reservava sempre umas garrafas de um conhaque especial para nós apreciarmos. As garrafas nem tinham rótulo, mas o sabor era fantástico e posso jurar-vos que é exatamente o mesmo sabor deste conhaque que agora me serviram.
O estalajadeiro foi buscar a garrafa e, com uma expressão divertida, segurou-a pelo gargalo e fê-la rodar sobre o seu eixo. Esta garrafa também não tinha qualquer rótulo e, pelo que se lembrava, era idêntica às de Las Palmas na forma e na cor do vidro. O caminhante afundou-se mais na poltrona, pensativo.
Ficou então rico… - lembrou a anfitriã – o que é que sucedeu à sua fortuna? Porque ei-lo aqui, com roupas boas e calçado feito à mão mas a caminhar a pé, sem carro nem motorista.
- Não sei o que sucedeu ao meu dinheiro… Todos os meus familiares desejavam a minha morte para a herdarem, mas tive sempre sorte e nunca o conseguiram…
Você deve estar cansado – voltou a anfitriã – o seu quarto está preparado lá em cima, devo avisá-lo de que não é nada de luxuoso, mas talvez lhe faça lembrar algum dos seus quartos de outras Eras – gracejou, ou pelo menos o caminhante queria acreditar que sim – o seu quarto em Leipzig quando estudou para se formar, ou o seu quarto de Potsdam, quando se pôs em campo para investigar o destino dos seus irmãos nos campos nazis de extermínio – cada palavra dela era como um golpe, uma surpresa que lhe tolhia o ar nos pulmões – o melhor que tem a fazer agora é ir repousar um pouco e retomar a sua viagem quando se sentir com forças. Mas há um favor que lhe queríamos pedir…
- Considerem-no feito... Qual é o favor?
O estalajadeiro aproximou-se e, depois de verter dois dedos de conhaque no seu copo, narrou o que pretendia dele:
- Deve ter notado que esta não é uma estalagem comum, na verdade, nem mesmo nós somos estalajadeiros. Chegamos como você, caminhando por essa estrada longa e desesperante, e depois de aqui chegarmos, quem nos recebeu seguiu o seu caminho e nós ficamos a cumprir o seu papel. É isso que pretendemos de si, que fique aqui um pouco como se fosse o dono da estalagem até chegarem outras pessoas, e então você cede-lhes o seu lugar e retoma o seu caminho anterior…
- Mas eu não consigo! – ainda protestou com veemência - eu nem sei cozinhar, e quando faço uma cama, os lençóis e cobertores saem todos do sítio como pétalas soerguidas pela brisa.
- Não se preocupe com isso, quando chegar a altura você saberá o que fazer. Seja uma pessoa ou um grupo de pessoas, um ancião ou uma criança, você irá encontrar as palavras e os gestos que lhe forem necessários para se desenvencilhar.
Concordou em silêncio, ainda se debatendo com as suas dúvidas e os muitos mistérios daquela estalagem - peixe dourado a sacudir-se num aquário demasiado pequeno. Deram-lhe uma chave e subiu as escadas. O seu quarto tinha já a porta aberta, entrou e reprimiu uma exclamação. Era uma réplica – uma miragem? - do seu quarto de Leipzig, a escrivaninha de tampo a um canto, o piano de cauda que a sua senhoria conseguira entalar entre a cama e a janela, os canhenhos e livros espalhados sobre o tampo do piano, e por todo o lado, o perfume e o odor da pele de Larissa, e as suas peças de vestuário atiradas sobre os móveis como peças de caça abatidas. Ouviu um ruído no piso inferior, e voltou a descer as escadas.
O casal estava quase a franquear a porta de saída, e parou quando o viram. Aproximou-se deles, ainda era noite no exterior.
- Digam-me só mais uma coisa, porquê tudo isto? Para quê esta estalagem?
Ela aproximou-se de si, pegou na sua mão e guiou os seus dedos para a cicatriz que tinha no pulso. Ele sentiu-se quase assustado porque não lhe pareceu que tivesse tato, não conseguia sentir nos dedos o relevo e a comissura daquela ferida, como se não tivesse sensações exteriores ao seu passado e à sua memoria
- Não sabemos aquilo que nos espera – murmurou ela – se a plenitude ou o vazio absoluto. O que sabemos é que é longo o caminho quando se morre, e nesse caminho desolado e noturno todos podemos precisar de um abrigo e de um abraço. E quando alguém se frustra desta estrada comprida e procura um atalho, pode andar indefinidamente em círculos até voltar à sua antiga casa, e àqueles que conheceram em vida mas que já não são capazes de o ver, desligados do que é e do que sente. Esta estalagem pode ser a diferença entre completar a viagem com êxito ou errar para sempre numa noite infinita.
O caminhante assentiu em silêncio. Despediu-se dos dois amigos, e ficou a vê-los desaparecerem no vale de sombras. Já não sentia necessidade de descansar ou recuperar forças, preocupava-o mais agora parecer um estalajadeiro, ser um estalajadeiro, com a casa de portas abertas para receber o próximo viajante, como família, como um filho que regressa.

* José Eduardo Lopes nasceu em Moçambique, de onde se refugiou em Portugal com 13 anos. Os primeiros contos que editou na Web eram inspirados na escrita crua e forte de Raymond Carver. Muitas outras influências se juntaram a esta, com realce para Mário-Henrique Leiria, Borges e Cortázar. As suas histórias vão sendo escritas ao ritmo das ideias e memórias que experimenta, e daquilo que o quotidiano ou a fantasia lhe sugere.
O seu blogue: Estrada de Santiago



Toninho, meu Caronte pessoal - Angela Schnoor *

No final dos anos sessenta eu trabalhava em um estaleiro na Ponta da areia - Niterói.
Com horário flexível, ao terminar meu trabalho não usava a lancha da empresa.
Precisava atravessar uma faixa de mar entre a Ilha e a estrada que me levaria à estação das barcas para o Rio de Janeiro.
Esta travessia era feita em um pequeno barco conduzido por um homem simples e rude - encarquilhado pelo efeito do sal marinho.
Toninho usava um chapéu que cobria seu rosto tímido e conduzia o barquinho empurrando-o dentro da água através de um mastro que fincava no fundo do mar e gerava o impulso.
Assim, ele era o meu Caronte pessoal, embora o Rio de Janeiro não fosse, ainda, o inferno em que se transformou.

* Angela Schnoor diz de si mesma: «Nasci no Rio de Janeiro, Brasil, em março de 1944. Estudei e pratiquei a psicologia por mais de 40 anos. Jamais desejei concorrer ou participar de concursos. Como prêmios, a vida me deu duas filhas e alguns netos que me enchem de orgulho e afeto. Senti-me honrada quando amigos que encontrei através da Internet, traduziram e publicaram contos meus. Quase diariamente conto histórias que publico no blog Microargumentos. Além do psiquismo, as imagens me encantam e sinto necessidade de contar o que percebo em cada uma delas, mas não me sinto à vontade para escrever autobiografias.»
O seu blogue: Microargumentos



A morte de César - João Ventura *

Rindo às gargalhadas, César, Brutus e mais três senadores saíram de rompante do Senado, aos tropeções, claramente embriagados. Um deles contava uma história obscena que envolvia uma matrona, a sua filha e um escravo núbio. As sentinelas puseram-se em sentido e César respondeu-lhes com um arremedo de saudação militar.
Continuaram a caminhar cambaleando, Brutus e César de braço dado, um dos outros bebendo de um odre que trazia, com o vinho a escorrer pelos cantos da boca, manchando de roxo a alvura da túnica.
O cronomóvel, que tinha sido sincronizado para os 15 minutos que incluiam a morte de César às portas do Senado, accionara a microcâmara, que registava todos os pormenores.
Julio César afastou-se alguns passos, inclinou-se e começou a vomitar. Ou outros riram.
.................................................
O Conselho Supremo da Guilda dos Historiadores ouvia a exposição do Viajante. Um dos conselheiros exclamou:
- Então não houve assassinato? e Brutus estava inocente?
- Precisamente. Ao tentar endireitar-se, César tropeçou e caiu de borco. Os outros tentaram ajudá-lo a levantar-se, mas estavam tão embriagados que não conseguiram. Morreu afogado no seu próprio vómito...
- E o colega o que pretende fazer com esta informação?
- Escrever um artigo para o International Journal of Verified History, claro!
- Era o que eu receava – disse o Presidente da Guilda, e apontando uma pistola laser ao Viajante, disparou uma única vez.
Quando os robots da limpeza levavam o corpo, comentou:
- Era o que faltava, alterar a História com base numa simples verificação in loco…

* Português, gosta de escrever microcontos, mas por vezes arrisca-se a estórias um pouco maiores... Tem publicado um pouco por aqui e por ali, na Web e em antologias...
O seu terreno preferido é a área do fantástico, mas não se preocupa muito com rótulos, e é um devoto confesso da Fantástica Trindade (Borges, Calvino & Cortázar).
Gosta de livros em papel.



Chamaram-lhe tempo - Ana Carvalhosa *

Chamaram-lhe tempo, um tempo de escorrer na rua a chuva das lágrimas de existir, mas chamaram-no para lhe dizer que havia horas para sorrir, nos cômputo dos anos registadas as estações, era um... ir e vir de estados únicos, somente emoções, perdidos em minutos de não esquecer, foram abraços, e saudades, beijos a não perder, sobre as lágrimas, vontades de voltar a acontecer, chamaram-lhe de tempo, só para se puder contar, que o tempo é somente o existir, quando parado, sobre o plátano do jardim, ou o cedro da floresta, recebendo o vento da paisagem e soprando para outras paragens, tempos que se usam, a bem dizer, para estar no tempo que se tem a ter.

* Ana carvalhosa - Portugal - Lisboa - 1966; define-se amante da palavra simples, e do sentir de tudo.



Nariz Assassino - Samir Karimo *

Embora pareça um verdadeiro conto gogoliano, há quem diga que é a continuação das sagas do Major Kovaliov e do nariz, mas não, toda a menção à dita obra é pura ficção surreal.
Neste mundo artificial, ligado inalambricamente a todo o lado, as pessoas têm acesso a tudo… tudo se compra, tudo se vende, tudo se fotocopia, tudo se imprime, então noutro dia estava numa daquelas lojas de conveniência e vi que vendiam narizes artificiais postiços para quem não gosta do próprio corpo, se as mulheres podem siliconizar-se então os homens podem usar também narizes artificiais para captar melhor a essência feminina…Neste mundo virtual onde tudo se implanta decidi implantar a invenção, a máquina captadora de espirros para aproveitar o muco humano e transformá-lo em energia mas as coisas não correram como bem queria e então certa noite descobri que o nariz era a encarnação de um assassino que farejava as vítimas na Londres vitoriana  … quando estou a dormir sai do meu corpo e como se trata de um implante nem dou por isso até, então, como dizia, inala as vítimas, enfia-se dentro delas com uns tentáculos que saem das narinas, aquilo que chamamos pelos do nariz são os tentáculos do RANHOKITUS,  e com ajuda do cachecol de Jack, o estripador, ambos querem levar o mundo à extinção. Cheguei mesmo a descobrir que o cachecol tem vestígios de sangue de Jack e através de artimanhas tecnológicas consegue seduzir e arranjar as vítimas para aquele líder alienígena. O cachecol funciona como um portal interdimensional, criando hologramas a cinco dimensões e tem gps para se orientar pelos destinos e mundos alternativos já não sei o que fazer…. Estão a matar-me, socorro!

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e em Tradução, desde sempre foi apaixonado pelo mundo fantástico. Atualmente é tradutor e escritor. Dos textos traduzidos salienta-se a Loucura de Deus de Juan Miguel Aguilera, como autor destacam-se os contos Delírios Fantasmales, que saiu na Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia - Volume II, e Santa Claus Sideral y la Gota de oro Navideña, que saiu na Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia - Volume III, o poema Sedução que saiu no Poemário 2015 da Pastelaria StudiosComo S.Nodier publicou e traduziu uma antologia dos melhores contos de Charles Nodier (Contos Infernais de Charles Nodier, 2013). Em 2015 publicou a versão em castelhano e em português do seu livro de originais chamado Sobrenatural, do qual é tomado esse conto.



Pedido de ajuda - Vítor Leite *

Estou a escrever um livro e uma personagem fugiu. Já foi visto por aqui e por ali, e, também em parte nenhuma. Não é uma grande personagem, mas é alto. Não é gordo nem feio, embora não se possa dizer que é magro, muito menos bonito. Não é perigoso, repito: não é perigoso. Anda sempre bem despido. Fala pouco e sempre em letra minúscula. Representa muito para mim, penso mesmo que só terá representado para mim.
Caso o encontrem, pousem-no na água e soprem, ele virá. Desde já muito agradeço a atenção dispensada.

* Diz de si mesmo: «Sou português, de Leça da Palmeira, uma pequena localidade bem perto da cidade do Porto, onde há sempre vento que despenteia as ideias. Gosto de escrever pequenas histórias, as mais extensas ficam sempre por terminar! Participei em uma ou duas antologias, em papel, para além disso quase nunca publiquei nada do que escrevo. Participo regularmente e por divertimento em desafios literários.»



Lua Nova - Angela Schnoor

Tinha pouco tempo naquele formato para que não fosse logo percebida. Andava curiosa sobre aquele livro que via através da janela e levava seu nome. Embora detestasse ler por partes, foi a maneira que encontrou para ler sem ser vista. Todo mês, quando minguava, entrava entre as páginas e se deliciava com as fantasias que os humanos faziam em seu nome.




Explosão – Eduardo Oliveira Freire *

Doutor, a vida é uma explosão. Os meus ouvidos doem. Eu até ouço o estrondo das sementes rompendo a terra e emergindo na superfície. Não existe calmaria, o bombardeio está em toda parte. Até os pensamentos fazem barulho e o próprio silêncio. Por isso, procuro mergulhar num espaço vazio para que os meus ouvidos descansem. Eles estão doendo muito. Quero paz, entende? Quero fugir do turbilhão de sons que me invade todos os dias. A violência é inerente a todos os seres vivos, mas eu quero viver num mundo como os desenhos animados que assistia quando criança, em que todos os bichos do bosque eram amiguinhos. Por que a realidade não pode ser assim? Até o nascimento é um ato violente, rompendo entranhas maternas e cascas de ovos. Não consigo me acostumar com isso, doutor. Queria que todos nós fôssemos amiguinhos de mãos dadas correndo pelos campos verdejantes. Por que não podemos ser assim, doutor. Você me ouve? Está tão inerte... A arma que carrego é de brinquedo. Não fica preocupado, é que eu queria matar saudade dos tempos de moleque, quando brincava de bang bang com meus colegas da escola e da rua.

* Eduardo Oliveira Freire, brasileiro, formado em Ciências Sociais e aspirante a escritor. Gere os blogs http://dudv-descarrego.blogspot.com.br e http://cronicas-ideias.blogspot.com.br



Caminho Marítimo para a Europa - Vítor Leite

Aquele não era um dia igual aos outros. Como sempre, depois do trabalho enfiava-se na biblioteca nacional, e era como se ficasse desaparecido durante meia dúzia de horas, até fechar os livros, pegar na sua mochila e seguir caminho para casa, a comer um pão com qualquer coisa dentro. No metro, sentava-se sempre junto da janela, na última carruagem, quase sem ninguém dado o adiantado da hora. Ao andar junto das paredes assustava-se sempre com uma sombra, com um ruído vindo de baixo de um carro ou de dentro de uma casa.
Naquele início de noite chegou à rua e nem fechou a porta, como sempre fazia. Passou a porta e parou, a porta foi atrás do seu corpo, por pouco o atingiu. O estrondo que se ouviu passou junto das suas orelhas mas ele não se encontrava ali, estava transformado numa estátua, embora ainda não tivesse cócó dos pássaros na cabeça e nos ombros. A refazer-se do choque, sentia uma náusea, uma terrível dor de peito, uma vontade de virar o seu interior para fora. De repente deu três, quatro passadas para o lado, deixou cair a mochila atrás de si, encostou a mão na fachada do edifício e vomitou. Libertou uma pasta qualquer, mas nem encontrou coragem para analisar que restos ficaram no chão, mas aquele mal-estar não acabou ali.
Antes de avançar esta história convém apresentar, minimamente, esta personagem, homem de quarenta e nove anos, casado, mas a viver separado da sua família. Vive numas águas-furtadas com vista para outros telhados, não podendo abrir as janelas devido ao forte cheiro da merda dos pássaros. Sendo alérgico a tudo e mais alguma coisa, convém não se aproximar muito do telhado repleto de pombas. Tem vertigens. A casa resume-se a uma sala que tem cozinha e uma cama, e, partilha o sanitário lá do fundo, com outras pessoas que não conhece. A coisa mais sexy que teve nos últimos anos foi encontrar pelos púbicos na banheira.
Desde o seu divórcio que tinha muito mais tempo para as suas investigações históricas, e como fazia diariamente nos últimos anos, também naquele fim de tarde esteve a consultar livros antiquíssimos relativos às navegações dos marinheiros que viraram costas ao Tejo e foram, sem saber bem para onde, simplesmente partiram. Sabia todas as histórias desses homens, que iam com um pé no barco e o outro no fundo do mar, as suas vidas, as idas e voltas, sabia tudo. Idolatrava um tal Pedro Alvares Cabral com quem mantinha enormes e profundos diálogos. Nesse dia, com luvas brancas, tinha consultado um livro de mil e quinhentos e qualquer coisa onde acabou por descobrir umas cartas, possivelmente, dirigidas a um familiar desse Pedro. Na verdade as cartas não se encontravam endereçadas, ou melhor dizendo, direcionadas a ninguém em particular, e ao fim de cinco minutos ele tinha a certeza absoluta terem sido escritas para si.
Estamos no ano de 2016 na cidade de Lisboa, ele trabalhava como funcionário público, daqueles rodeados de papel, resmas de papel e era historiador nos tempos livres, não dava ouvidos às notícias de nenhuma crise, vivia ausente do presente. Era feliz sendo íntimo desse tal Pedro. Quando alguém perguntava “Mas esse já morreu, não?”, ele começava a falar de algo que só ele conseguia ver e descrevia uma vida inteira com os pormenores mais ínfimos, ponto por ponto, vírgula por vírgula. Se ninguém o mandasse calar, ao fim de quatro horas, calava-se, pedia desculpa e só voltava a falar quando alguém lhe dirigia alguma pergunta relacionada com a temática da navegação. Vivia o seu silêncio como se fosse um qualquer estado de transe, longe do sol, nunca navegava na luz de Lisboa, não sentia na pele o prazer de ser abraçado pela luminosidade que salta das pequenas pedras que desenham todo o pavimento da cidade. Pisava o chão mas também podia pisar bosta, ou seja, preocupava-se mais em andar no passado do que onde colocava os seus pés. As casas nas ruas é que o levavam para onde ele queria, o chão estava lá, mas podia bem nem existir.
Naquele momento ele sentia o desmoronar do seu mundo de conhecimento, cada uma das camadas de saber que ele diariamente e cuidadamente acrescentava em cada fim de dia. Quando todos corriam para as suas casas, este pequeno homem, dentro de um chapéu, atrás de um pequeno bigode e de uns óculos redondos perdia-se em velhos livros e papeis semi-comidos. Lia e relia a história, ficando com anos e anos bem arrumadinhos na sua cabeça, cada episódio pousado sobre outro acontecimento, tudo era estabilidade e tranquilidade. Camadas e camadas de conhecimento, muitos mil milhões de folhas de conhecimento.
Novamente pousou as mãos na fachada da biblioteca, como se quisesse movê-la, e ali verteu mais do seu interior. Dentro de si já não restava nada, mas o corpo ainda se contorcia e nada acontecia, nem um resto de… Nada! Começou a andar, ou melhor a arrastar os pés até casa, apoiando uma mão nas paredes que o acompanhavam ao longo da rua. Parou e voltou atrás para levar a mochila. Ao entrar na rua de Trás, onde ficava a sua habitação, viu que a sua mão estava quase em sangue, retirou a chave do bolso e abriu a porta, correu escada acima. Caiu uma duas, três vezes, e ao chegar lá acima, ficou mesmo de joelhos. A custo levantou-se, entrou em casa e ainda de casaco agarrou no telefone, fechou os olhos e com o indicador começou nove um oito sete… Aguardou 4,6 segundos, uma eternidade e disparou:
- Sim?! Ouve, sou eu, desculpa ligar a esta hora, mas preciso urgentemente de falar, dá-me um segundo da tua vida, só um! Hoje, sabes, hoje… hoje devorei uma carta do Pedro…
- Bem sei! Desde que nos separamos que devoras a vida desse! – Interrompeu ela.
- Não, não é bem isso, hoje devorei mesmo uma carta dele! É sobre isso que te quero falar…
- Agora? Já estava deitada! Não podemos falar amanhã?
Silêncio. Ela continuou:
- Desculpa, mas, agora não, falamos outro dia, ligo-te amanhã ou depois!
- Isso! Sim, depois, sempre depois. Depois do depois o que resta?
Desligou o telefone e ficou um silêncio espesso como a noite lá fora. Estava só, cada vez mais isolado. Sabia disso como ninguém. Deixemos a literatura para os escritores e analisemos os acontecimentos históricos. Posso dizer que nunca mais se falaram, também podem ficar a saber que deixou de aparecer no trabalho.
Ao fim de uma semana, voltou a entrar em casa a correr, olhou em volta, uma e outra vez, e empurrou a mesa para junto da janela. Com a camisa fora das calças, agarrou em papel e num lápis, e, com o pé puxou uma cadeira meia desmanchada, acabando a cena com o atirar do seu corpo para cima dessa cadeira. O esgar que saiu da sua boca e o ranger da cadeira foram os últimos sons que se ouviram antes de começar um leve rosnar do lápis sobre o papel. O papel branco tinha uma pequena mancha de sangue ou talvez um resto de comida, tipo uma impressão digital, que possivelmente a sua mão havia deixado. Ficou imóvel a olhar para aquela marca. Arrastou a cadeira para trás e para a frente, procurou uma melhor posição e começou a escrever:
Hoje, como nas últimas três noites vi o sol nascer. Os meus olhos não se fecham desde terça-feira, quatro dias e três noites, sinto-me mal, muito mesmo. Na biblioteca nacional descobri uma carta do Pedro a falar na existência de uma ilha.
Fala num índio de nome Semvolta que tinha vindo do sol poente, acompanhado de mais três homens e quatro mulheres e tinham-se instalado juntamente com a população do nosso velho reino. Não trouxeram nenhum deus nem procuraram levar ouro. Não tinham armas, e carregavam sonhos, não queriam vender nem comprar pessoas, não pretendiam matar gente, muito menos destroçar futuros, desconheciam por completo a palavra “ódio”. O Semvolta veio com a sua Gatavadia, descobriram o caminho marítimo para a Europa. Vieram do lado onde o sol dorme, confirmar, como diziam os velhos da sua terra, se o sol vem mesmo do lado do mal, pois atrás do sol virá o mal, diziam eles. Naquele texto nada explicava o modo como tinham iniciado a comunicação entre as duas culturas, também não falava nos barcos que os tinham trazido até ali.
- A!... sinto a morte chegar, ouço os seus passos, os seus longos braços a envolverem-me! O seu bafo no meu pescoço provoca-me arrepios. Isto, digo-te eu!
Dizia Pedro a meio do texto que o povo do Semvolta viria atrás de si para viver neste mundo novo, se os deixassem partir, pois já sabemos que nestes momentos há sempre uma mão que se sobrepõe à razão e cobre a luz. Só oito tinham partido e estavam numa ilha cheia de sol, calor e gente afável, mas mais viriam. Numa noite de bebedeira, Semvolta contou, sempre por gestos e desenhos, como era a sua terra, e quando disse que as mulheres andavam nuas despertou muitas atenções. A assistência rejubilou de alegria, com aplausos e assobios. As notícias chegaram rapidamente a muitos ouvidos, mas logo se disse que era tudo uma história de fundo de copo. Era tudo fruto do vinho. Passados dois dias já ninguém se lembrava de nada, nem se sabe onde fica a tal ilha. Como se a chuva tivesse lavado todo o enredo, tudo ficou no esquecimento. Será? Ou, foi desde aquele momento que Pedro decidiu ir ver a cama do sol? Ninguém confirma, mas Pedro Partiu.
As embarcações dos portugueses, conforme ficavam vazias de gente e de alimentos iam sendo ocupadas pelo ódio, e aqueles indígenas que tinham vindo bem antes dos portugueses chegarem lá, tão despidos de tudo, ali estavam, sem procurar nada, somente a viver o momento e as pessoas, aprendendo. Muito provavelmente terão seguido o seu caminho, completando a volta ao mundo. Fiquei sem perceber como chegaram, se partiram, se a viagem acabou na ponta de uma faca, se um padre os espetou numa cruz. Pedro não disse nada, e eu calei a sua mão.
Sabes, voltei à biblioteca e entre prateleiras arranquei a folha com a letra desenhada pela mão do Pedro e comi-a. Mastiguei e engoli. Era horrível, de sabor, mas pior ainda de conteúdo, quase igual a muitos romances desta nova literatura, uma história sem fim, onde o leitor podia imaginar o que bem entendesse. Começava logo por não localizar a ação, falava numa ilha, mas qual? Onde estava agora essa ilha? Mas pior que tudo, dizia que tinham sido outros os primeiros a atravessar o Atlântico, outros que não nós! Ninguém podia sequer imaginar essa inversão da história. Não deixei! Mas agora estou mal.
- Vou morrer, sinto e digo-te eu, sim, sei que é neste preciso moment____” (e a linha continuava até ao limite lateral da folha).
A autópsia concluiu que o seu corpo tinha sido devorado, sim, isso mesmo: roído!, desde o interior por um vírus hiper perigoso, estranho e aparentemente desconhecido. Era aconselhado não haver contacto nenhum com o corpo. Assim, foi hermeticamente fechado e encaminhado para a cremação.
Acabada a cerimónia, a mulher dirigiu-se a casa do ex-marido, estava na hora da chegada dos homens das mudanças. Ding dong, dirigiu-se à porta, “boa tarde” e entraram quatro homens, melhor dizendo quatro barrigas, de braços mais gordos que musculados, todos de fartos bigodes e barba de três dias. “Onde está a mesa, minha senhora?” Ela desviou os olhos da janela e sorriu, “naquele canto, por favor, venham!”. Dirigiu-se para a mesa onde o seu ex vivia na história. Os homens começaram a reclamar pois não iriam arrumar a papelada, que tudo o que era para levar devia estar pronto, e mais um palavrão e mais uma reclamação.
- Não tem qualquer problema! Podem levar, já! – Disse ela empurrando o monte de folhas para o saco preto de lixo.
Levaram o mobiliário todo e as roupas também, ela amarrou o saco preto, atirou-o para junto da porta de saída e sacudiu as mãos, uma na outra. “Ah! Falta a porcaria da gata…” Falava sozinha, aproximou-se de uma janela e começou a chamar como se cantasse alto, “Btch tch miau, gata? Xiuxiu bixaninha… Vem cá minha gatinha. Btch vem cá minha gata vadia!”
Assistimos à perda definitiva das referências a essa inacreditável carta de Pedro Alvares Cabral. Será que, como nos filmes, a mulher ainda vai pôr a cabeça dentro do saco para confirmar da validade daquela papelada toda? E a carta que ele deixou? Tudo perdido dentro de um saco preto, com viagem marcada para um aterro qualquer. Ele, meio historiados, podia ter saído do bolso do Fernando Pessoa, caso esse escritor tivesse existido na realidade, e não fosse uma soma de heterónimos. O nosso historiador morreu sem viver e destruiu o segredo da navegação à volta do mundo, a descoberta do caminho marítimo para a europa! Perdeu-se uma vida como se perde um comboio ou uma paixão, e, no final ficámos ser perceber como o Semvolta apareceu na ilha, “Qual ilha?” pergunta alguém, mas a carta onde Pedro tinha explicado algumas coisas, perdeu-se nas entranhas do nosso homem que viveu e morreu sozinho.



Liberdade é um conceito complexo para personagens - Angela Schnoor

Escrevia, mas não nominava suas criaturas. Deixava que fossem livres e jamais decidia sobre suas vidas. Quando, exausto, dormia sobre suas anotações e as personagens fugiam, sendo captadas por escritores que lhes impunha nome e destino.



Silly Season - João Ventura

Adriano, o jornalista de serviço na estação XXL, estava preocupado: para o noticiário das 8 tinha recebido quatro notícias das agências, às 9 só tinha tido duas, às 10 uma e tinha conseguido respigar um fait-divers de um dos matutinos. Às 10 e trinta e cinco, era claro que as fontes de informação tinham secado, isto é, nada acontecia, e Adriano começou a ficar angustiado ante a perspectiva de chegar ao noticiário das 11 sem ter notícias para dar, o que seria um acontecimento inédito na XXL (“a estação sempre em cima do acontecimento! Pam! Pam! Pam!”).
Às 10 e 45 tomou uma decisão: tinha de haver pelo menos uma notícia. Meteu no leitor um CD dos Ugly Boys, começando com a faixa “There’s going to be trouble”. Olhou em volta, viu o cinzeiro de pé alto, tomou-lhe o peso. Com o cinzeiro bem agarrado na mão esquerda (Adriano era canhoto) saiu do estúdio, desceu a escada e quando chegou à rua, observou com ar apreciativo a fila de carros estacionados ao longo do passeio. Metodicamente, usando o cinzeiro como uma clava, foi deixando marcas em todos: o BMW azul ficou com o pára-brisas estilhaçado, o Corsa com uma porta metida dentro, o Peugeot sem o farol direito e o vidro de uma janela, e assim sucessivamente, vidros partidos, chapa amolgada, sem verdadeiramente apontar, limitando-se a dar balanço ao cinzeiro e fazê-lo bater como calhava. Ao fim de 12 ou 13 parou, deu meia-volta e regressou calmamente ao estúdio. Vários populares se aproximavam agora dos carros danificados e ao fundo da rua despontavam o subchefe Eleutério, ainda a abotoar os botões do blusão e o guarda Rodolfo, que alguém tinha ido chamar à esquadra, a dois quarteirões de distância.
Quase em cima das 11, Adriano meteu a publicidade do alinhamento, o indicativo do noticiário, o sinal horário, e com a sua voz bem timbrada começou:
Há poucos minutos, por razões ainda não esclarecidas, um indivíduo danificou várias viaturas estacionadas ao longo da Rua das Sardinheiras. Para o efeito utilizou um objecto pesado, que algumas testemunhas disseram tratar-se de uma barra de ferro.
Fez uma pequena pausa e ouviu, através da porta entreaberta da cabina, as pancadas na porta do estúdio, com uma firmeza que claramente identificava o braço da Lei. Então concluiu a notícia:
A PSP tomou conta da ocorrência e procede a diligências no sentido de identificar o autor deste acto de vandalismo. Em próximos noticiários, a XXL apresentará os novos desenvolvimentos deste caso. E agora, mais uma faixa do último trabalho dos Ugly Boys: “It´s all over, baby!”.
Enquanto se levantava para ir abrir a porta, Adriano sentia-se orgulhoso: tinha conseguido evitar o pior dos males – um noticiário sem notícias! – e tinha inclusivamente deixado matéria para o colega que viria rendê-lo daí a pouco. Nas consequências que viriam para si próprio nem pensava. Tendo sido o melhor aluno do Curso de Jornalismo, ainda conseguia citar de memória o parágrafo inicial do manual da disciplina “Ética Profissional”: Na sua missão sagrada de informar o público, o jornalista tem por vezes de fazer sacrifícios pessoais…



Amor Surreal - Vítor Leite

Queria estar morto sabendo que a eternidade dura três segundos, a olhar e ver que chegas dentro de um sorriso, com a minha língua ainda esquecida no teu pescoço, com um rasto dos meus beijos atrás de ti. Desconheço horas dentro desta escuridão, muito menos norte, nem limites! A respiração ofegante diz que vamos chegar quando o corpo diz que não querer parar. Corpos que procuram fundir-se, pudessem eles e seriam o resto de um qualquer vulcão, estátua eternamente fixa. Memórias sublinhadas pelo corpo, a pele na pele, como se fosses só mão a asfixiar este corpo, como se eu fosse todo mão a envolver o teu corpo, um polvo, um ar asfixiante, um calor do deserto, uma memória… o que fica dos carinhos da tua pele na minha, da minha na tua, um pequeno salto para a eternidade não mais do que esta cama, um mundo mínimo neste presente eterno, que acaba em três segundos.
Queria tanto saber-me morto nesses teus braços, onde vivo. Saber-te feliz depois de clareares por dentro, e falares do passado, dessa eternidade maior que míseros segundos. E sorris ao olhar as sombras, este mar, e sorris ao procurar nuvens objecto. Sorris ao olhar tantos dedos que já foram tão poucos. Estremeces ao questionar “para quê e agora?”, e arrepiada ao sentir o vento a passar viras-te rápido à procura dos lábios que te sopram. Sim, a eternidade já começou, bem mais longa que o prometido.
Queria estar morto sabendo que a eternidade dura três segundos. E viver cada segundo como não houvesse um outro, como houvesse sempre escuridão com a nossa cama lá dentro. Não! Sem segundos, sem relógios, sem sombras, só vida em dois corpos, e os teus braços onde vivo, os meus que te esperam e te agarram como se a eternidade estivesse aqui e aqui acabasse.
Imagino o início do meu corpo onde me tocas. Ilusão.
E tu longe e os teus braços aqui. Chegas, por certo sem cabeça e eu vejo-te num sorriso, e tu longe com a minha língua ainda esquecida… e agora, queria tanto estar morto nesse meu colo se a eternidade não passar de três segundos…
Fecho as gavetas todas, todas! Não pretendo ser mais o teu sol, esse objecto intermitente, quero ser luz, estar presente e constante. Estás mais bonita hoje, ouço, como se não mexesse a boca, como dito por qualquer outro. Quantas bocas estão aqui? Fechadas as gavetas todas, ficamos os dois, ou somente eu e tu? Sim, os dois e a vontade de estar morto desconhecendo que essa eternidade terá acabado.



A menina 'boazinha' - Angela Schnoor

Sempre usou máscara de anjo. Naquele dia em que seu pai brigou por uma travessura, ela entrou no mar e se afogou. Foi a maior culpa dentre as muitas provocadas em sua breve existência.



Dionisio e os relógios - João Ventura

Dionísio começou um dia a não gostar de relógios. A achar irritantes aqueles objectos, que insistiam em modificar o ritmo segundo o qual ele gostava de viver.
O relógio de pulso foi o primeiro: mesmo capaz de funcionar a 60 metros de profundidade (tinha sido comprado quando Dionísio era praticante de caça submarina) não sobreviveu à acção do triturador da cozinha. Em boa verdade, este também não, porque a caixa do relógio era de aço inox de alta resistência.
Aos outros dois relógios que repousavam pacificamente na gaveta da mesa-de-cabeceira, nem o facto de estarem parados (eram modelos já antigos, mecânicos) lhes valeu: quando foram parar ao caixote do lixo, a acção do quebra-nozes já os tinha tornado irreconhecíveis. No entretanto, caminho semelhante tinha seguido o relógio de parede da cozinha (previamente esquartejado com o cutelo dos bifes). Os relógios digitais do micro-ondas e do forno do fogão foram cirurgicamente apagados com o picador de gelo.
Até este ponto, a esposa de Dionísio foi conseguindo gerir o medo que lhe provocava o comportamento anómalo do marido. Mas quando o seu relógio de pulso preferido (caixa em ouro de 18 quilates, prenda de casamento de um tio já falecido) foi aterrar na lareira acesa, meteu meia dúzia de peças de roupa numa mala e foi para casa dos pais, felizmente ainda vivos. Ele está louco, mamã, soluçava a pobre senhora. De facto, acender a lareira num dia de Agosto em que o Instituto Meteorológico assinalava uma temperatura de 41 ºC dificilmente deixava lugar a outro diagnóstico.
E assim Dionísio continuou eliminando todos os sinais de contagem do tempo. Ainda tentou alvejar com uma carabina de pressão de ar o relógio da torre da igreja que se via da janela da sala, mas verificada a inutilidade desse esforço, resignou-se a correr os pesados cortinados para o afastar da vista.
Afundado num sofá, na sala quase às escuras, Dionísio tinha sossegado, o silêncio à sua volta actuando como um calmante para o seu cérebro cansado. Foi então que do núcleo mais central desse silêncio começou a surgir um ritmo, um batimento, uma pulsação regular, como se um monstruoso relógio se tivesse instalado dentro de si próprio. Quando teve consciência da origem daquele pulsar terrificante, Dionísio soube o que tinha a fazer. Como um autómato telecomandado, levantou-se, foi à cozinha, trouxe a faca de trinchar, tornou a sentar-se no sofá, procurou no lado esquerdo do peito o local onde o batimento era mais forte, apoiou aí a ponta da lâmina e lenta mas firmemente, empurrou a faca. Nos breves instantes até perder a consciência, Dionísio sentiu uma paz a invadi-lo, como se finalmente o tempo estivesse a parar...

Foi com essa expressão pacífica no rosto, como se dormisse, que a polícia, alertada pelos vizinhos, o foi encontrar três dias depois.

3 comments:

  1. Parabéns Stefano! Esta edição está maravilhosa. Um louvor especial ao fantástico Jose Lopes, escritor completo, pelo belo português e pelas ideias originais. Um abraço a todos.

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  2. Muitos parabéns ao Stefano pela edição e tenho muito prazer em ver textos meus na companhia de outros, de autores muito entusiasmantes de ler. Parabéns para todos nós.

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